Dissertação
sobre um amor
O amor não morre nunca.
Todos os dias nasce de novo com a madrugada. Então rompe na escuridão mais
negra e do silêncio mais fundo, empurra com força a névoa e canta, canta a
idade da sua paixão. O amor não morre nunca. Em 1973 uma menina-mulher chegava
à cidade com o sétimo ano do liceu debaixo do braço. Trazia um fogo no olhar,
uma luz diferente, mesclada entre as praias e a serra. Sentada no miradouro do
jardim da Estrela não via os pombos das aldeias à volta de Leiria nem as
gaivotas fugidas à tempestade de São Pedro de Muel. Outra paisagem, outro
povoamento. Era uma menina-mulher e as «maçãs do rosto» cheiravam mesmo a maçã.
Todo o seu rosto era uma geografia de sentimentos. No seu cabelo apetecia-me
semear todos os meus sonhos. E os sonhos dela. Nos seus lábios apetecia-me
matar toda a minha sede. E a sede dela. Nos seus ouvidos apetecia-me contar
todos os meus segredos. E ouvir os dela. Hoje, 30 anos depois, a mulher-menina
mantém intacto o fulgor dessa geografia de afectos. A voz é igual à voz desse
tempo inicial, tempo de descoberta e de fascínio. Trinta anos depois, na
passagem do tempo, nada se perdeu do timbre, da altura e do calor dessa voz que
trazia o campo para a cidade. A voz da menina-mulher abria-me as portas de
todos os celeiros, de todas as adegas, de todas as casas, de todos os
palheiros. Ouvi-la era ser, de repente, cavador e abegão, pastor e lagareiro
num lagar que produz o mais fino azeite da Serra de Aire. Hoje ouvir a sua voz
de mulher-menina é estar de novo no meio da eira, saber a gramática das
sementeiras, ouvir a campainha dos bois, rezar para que não haja colheitas
perdidas, oferecer vinho a quem passa no dia de Pão por Deus. O amor não morre
nunca.
José do Carmo Francisco
(Óleo de Romaine Brooks)
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