Poema para os olhos
de Maria Belmira
Peço desculpa. Tinha prometido trazer para junto dos teus
olhos quando regressasse do Alentejo todo o fulgor do olhar dos ranchos de
ceifeiros. Mas não vi ceifeiros hoje nos campos entre a antiga fronteira de
Badajoz e Montemor-o-Novo onde organizo este poema debaixo de uma árvore e
perto de um jardim silencioso. Não vi os ceifeiros de Fialho de Almeida na
terrível faina de terem sede, separados entre si por seis metros de distância e
olhando ao longe os pássaros calados, os cães com a língua de fora, as éguas
paradas e tristes, o ar cada vez mais pesado e mais raro.
Peço desculpa. Tinha prometido trazer para junto dos teus
olhos quando regressasse do Alentejo a voz dos ceifeiros saídos directamente
dos poemas de Francisco Bugalho – esses mesmos que foram escritos a meia dúzia
de quilómetros de Castelo de Vide. Também não vi os ceifeiros deste poeta-lavrador,
ceifeiros capazes de levantarem a voz mesmo contra o vento suão, mesmo contra o
calor que não afecta a força da sua ternura ao manusear os braçados de espigas
como quem tira um pão cozido da arca onde repousa na viagem entre a boca do
forno e o branco da mesa.
Peço desculpa. Tinha prometido trazer para junto dos teus
olhos quando regressasse do Alentejo uma paisagem povoada por gente viva mas os
meus olhos cansados trazem apenas o pó das máquinas que deixam no seu caminho
uma nuvem alta entre a linha do restolho e a linha do horizonte. Aquilo que
poderia ser uma forma de conhecimento e de afecto fixa-se neste poema desolado
no simples registo mecânico da passagem de uma máquina silenciosa pelo chão da
seara exausta.
Peço desculpa. Eu próprio já não devia ter ilusões acerca do
sabor do pão que se come hoje em dia. As máquinas cortam as espigas de outra
maneira, noutro ritmo e noutra velocidade. Se formos juntar a esse factor a
desvalorização da água, do sal e do fermento, percebemos melhor esta actual
falta de sabor do pão nas nossas mesas tão cheias de pressa e tão vazias de
ternura.
José do Carmo Francisco
(O óleo é de Marcos Damascena)
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