quarta-feira, 26 de maio de 2021

Abadia


Abadia

Empurro esta cancela como quem folheia
a página conhecida dum livro estimado
- isto é, devagar, sem deslumbramento nem surpresa.
Este alvoroço familiar nada tem a ver
com os livros de instrução primária
- desenhavam a família numa cadeia de obediência,
  castigo e resignação.
Sinto que a vida é de facto um campo de batalha
e não uma sucessão de dias alinhados pelo destino
- basta ver esta criança
  que é mostrada como se fosse uma bandeira.
Demoro-me a olhar o fogão da cozinha
- a sua muda resposta às sucessivas descobertas da técnica
  foi a permanência do seu trabalho eficiente
  a quantidade e a qualidade daquilo que nele se pode fazer
  hoje como sempre.
A mesa transforma-se numa refeição de palavras
numa confluência de sentimentos
e ganha uma súbita segunda realidade
- é quando as janelas abertas
  deixam entra o sol e o pó que cada um de nós arrastou na estrada
  (isto é os nosso problemas que não cabem dentro dos automóveis).

 José do Carmo Francisco

(Fotografia de Luís Eme)

terça-feira, 11 de maio de 2021

25 de Abril para uma jovem

 


25 de Abril para uma jovem
 
Na caixa postal da tua idade
Deposito aos poucos a memória
 
Sei coisas que tu não imaginas:
A fome diária mal disfarçada
Ao longo das batatas da semana.
Os pés descalços na missa de domingo
Entre botas de quem podia mais.
A lágrima numa medalha ao sol
Num dia dez de Junho na TV.
 
Sei coisas que tu não imaginas:
A morte a instalar o luto
Por telefone e telegrama à porta.
A Europa num comboio nocturno
Sem fronteiras para a dor.
As prisões como navios pedidos
À procura duma chave ou da luz.
 
Podia ser um pedaço de pão
Hoje não se curvam já a ele
Nem o beijam em respeito à vida.
 
Perdem-se em buracos de som
Sapatos de ténis debaixo da terra.
 
E não escrevem cartas nem escrevem
O que não sabem nem procuram.
 
In «Leme de Luz»  (edição Sol XXI Poesia - 1993)   
 
José do Carmo Francisco

(Desenho de Manuel Ribeiro Pavia)

 

segunda-feira, 26 de abril de 2021

Até Esse Momento


ATÉ ESSE MOMENTO

Lembrarás então o pai aqui sentado
A máquina de escrever no chão
Os discos na parede entre a luz e o pó
 
Irão passar talvez muitos anos
Farás promessas que não vais cumprir
E dirás ruas para voltar noutras horas
 
Será como quem percorre um caminho
Iluminado pela luz do teu olhar
À procura das palavras subterrâneas
 
Lembrarás então o pai aqui sentado
Um gelado presente do indicativo
E silencioso que não fala – não esquece
 
Passarás nas tuas mãos um fio
Será talvez a memória das noites
O tempo do leite e das fraldas
 
Será como quem procura descobrir
Nos desenhos (nos cadernos escolares)
Uma outra maneira – a tua outra voz
 
Lembrarás então o pai aqui sentado
Não como pai mas como anónima pessoa
Surpresa a esperar no céu do outono
 
Terás nas tuas mãos um retrato
O voo das aves por cima da casa
Como inesperada vírgula do tempo
 
Será como quem procura fragmentos
Num momento ou talvez num lugar
Na tua idade como um portão aberto
 
José do Carmo Francisco
 
(Óleo de Edward Hooper)


quarta-feira, 14 de abril de 2021

A sombra de Deus


A sombra de Deus

Um dia, aí por 1983, na principal rua de Algés, um senhor desconhecido e vindo não se sabe de onde, segurou, súbito e enérgico, o meu filho Filipe pelo seu pequeno kispo azul e, assim, o salvou de morrer esmagado por um Mercedes Benz. Eu estava do outro lado da rua, a mãe e as tias estavam distraídas e atravessar a rua mais movimentada de Algés não era para ele um problema. Mas podia ter sido se esse misterioso senhor não tivesse sido rápido e eficaz. Ainda hoje penso no que lhe gostaria de dizer. Por isso lhe chamo hoje ainda, quase trinta anos depois, a sombra de Deus.

Outro dia, muito mais tarde, no ano de 1992 uma médica cujo nome não fixei, percebeu em segundos a gravidade da doença da minha filha Marta. Durante quatro dias alguém do Hospital mandou-a sempre para casa em vez de chamarem um cirurgião para decidir se ela tinha ou não de ser operada. Invadida pela septicémia, o corpo da minha filha lembrava uma criança do Biafra. Pele e osso, olheiras fundas e negras. Ainda hoje julgo ver a sombra de Deus nos longos corredores da Pediatria do Hospital. Talvez seja também e, ao mesmo tempo, a sombra do médico que largou tudo, atirou a bata para o chão e correu (comigo sempre atrás) vários quilómetros no labirinto do grande «H» do Hospital de Santa Maria.

Mais tarde em Abril de 1995 julguei ver de novo a sombra de Deus numa cama articulada de um Lar de Idosos onde a minha mãe sofria entre tubos, lágrimas e vitaminas. Essa mesma sombra, a sombra que eu não conseguira alcançar nem em Algés nem no Hospital de Santa Maria para lhe agradecer a dádiva de uma recusa à morte feita de modo ostensivo no prolongamento da vida. Talvez fosse essa sombra de Deus e a Sua vontade que escolheu a Sexta Feira Santa para levar o corpo da minha mãe já cansada de tanta doença para repousar na sua sombra mais viva que, afinal, todas as nossas luzes.

Nunca lhe toquei, na sombra de Deus. Mas sei, tenho a certeza, que ela já passou três vezes perto de mim. Mas sei, tenho a certeza, que essa sombra recusou aceitar a fotografia da final de uma corrida perdida contra a morte em 1983 e 1992. Não em 1995 pois a minha mãe já tinha morrido muito antes quando descobriu, mesmo sem ler o poema de Hélder Macedo que afinal «os filhos da morta já não eram irmãos».            

José do Carmo Francisco

(Fotografia de Valter Vinagre)


quarta-feira, 31 de março de 2021

75 (Fernando Venâncio)

 


75 (Fernando Venâncio)

Passava pela Rua Pedro Dias a caminho do Hospital de Jesus, dez anos de viagens pedestres também para o Instituto Britânico antes do quisto dermóide, gigantesco e teimoso. Anos depois, nova operação. Hoje a mesma geografia; só mudou a abordagem das palavras porque o selvagem continua ao piano.

José do Carmo Francisco

(Fotografia de autor desconhecido)


sábado, 20 de março de 2021

1923 (As ruas de Buenos Aires)



1923 (As ruas de Buenos Aires)

Quando em 1923 Jorge Luís Borges viu publicado o «Fervor de Buenos Aires», resolveu aproveitar os colóquios e as palestras do British Council para colocar exemplares do seu livro nos bolsos das gabardinas e dos sobretudos do público presente na sala. Havia leitores garantidos porque não se registavam devoluções. Hoje continua quase tudo como em 1923; as alterações são apenas de pormenor.

José do Carmo Francisco

 

domingo, 7 de março de 2021

2006 (O esquilo no jardim)

 


2006 (O esquilo no jardim)
 
Meu neto Pedro elabora
Uma banda desenhada
Em menos de meia hora
E ninguém deu por nada.
Numa cidade escocesa
Em particular excursão
O esquilo foi a surpresa
Que armou a confusão.
Foi um esquilo de jardim
Que queria travar o passo
De quem assado ou assim
Era intruso no seu espaço.
Com respeito ao animal
Assustou, foi assustado
Tudo tem uma moral 
Vai comigo a todo o lado.
 
José do Carmo Francisco
 
(Fotografia de autor desconhecido)

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

327819 (O telefone de Alexandre O´Neill)

 


327819 (O telefone de Alexandre O´Neill)

O meu caderno azul continua igual a 1978, cansei-me de riscar os nomes dos mortos; na Literatura não funcionam os parâmetros do Registo Civil. Sei que o número mudou muito: de 327819 passou a 3427819 e de 3427819 passou a 213427819 mas quando quero mesmo ouvir Alexandre O´Neill abro um dos seus livros e percebo que o Mundo pouco mudou desde 1978.  

José do Carmo Francisco

(Fotografia de Alexandre Delgado)


segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Sobre um tema de Emanuel Félix

 


Sobre um tema de Emanuel Félix

(poema - autógrafo para Manuel Emílio Porto)
 
O motor duma traineira
Que fundeou na baía
Trabalhou a noite inteira
Mas só o poeta o ouvia
 
O motor duma traineira
Que fundeou na baía
Trabalha a noite inteira
Numa faina de alegria
E faz à sua maneira
Sumário dum novo dia
Como se uma feiticeira
Desenhasse a profecia
Duma vida verdadeira
Longe da monotonia
 
O motor duma traineira
Vem acordar o poema
Numa mesa de madeira
O poeta tem um dilema
Há a palavra pioneira
Que desenha no cinema
O fogo de uma lareira
Criando um novo sistema
O poeta escuta a traineira
Que dá a força ao poema
 
O motor duma traineira
Que fundeou na baía
Trabalhou a noite inteira
Mas só o poeta o ouvia
 
José do Carmo Francisco  
 
(Óleo de Charles Simpson)

terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

Memória justificativa do livro «The Busby Years»


Memória justificativa do livro «The Busby Years»
 
(a Francisco José Viegas, autor de «Morte no Estádio»)
 
A morte será também um fuso horário
Um meridiano de silêncio e de escuridão
Entre a água do rio e a madeira do bosque
Todos trazemos uma bagagem de mortos
Este livro evoca os jogadores do M. United
Perdidos num desastre aéreo em Munique
 
Há a nossa memória de Pavão nas Antas
No jogo treze e no minuto treze a morrer
Em Coimbra, Nené perdido num desastre
Quando o mini não desfez a curva grande
Em Lisboa Toni Kakinda a forte esperança
Da equipa de Caneira e de Simão Sabrosa
Antes Pepe em Belém de vinte e três anos
Com a mãe a trocar bicarbonato por potassa
 
Nunca se fala nos jornalistas também mortos
Os enviados especiais a esse lugar de morte
De onde já não é possível escrever notícias
Morreram todos assim no seu fato completo
Caneta de tinta permanente e bloco de notas
Cachimbo e todos eles de chapéu à Borsalino
Mas tirando as suas famílias e alguns colegas 
Pouca gente recordará hoje os seus nomes
 
Comprei o livro numa livraria em frente
Ao portão do Observatório Astronómico
A separar os dois lugares há um relvado
Uma metáfora imediata de todos os altares
Na liturgia dum jogo afinal mais que jogo
A memória activa, o espaço de sentimento
Lugar verde onde ficaram todos os sonhos
Adormecidos devagar pela diária rotina
 
A vida é na verdade a preto e branco
Por isso estas fotografias são verdade
A cor é apenas a mentira consentida
Só há estas duas cores nas lágrimas
O mesmo para o medo, para a morte
Escusamos de procurar o colorido
A vida é na verdade a preto e branco
E ficou nos velhos álbuns de família
 
Passam por mim japoneses de uniforme
Jovens alunos em passeio de finalistas
Não pensam na morte sequer Hiroshima
Não reparam no livro que levo na mão 
Querem apenas viver e têm a sua pressa
A morte será também um fuso horário
 
José do Carmo Francisco  
        
    (Fotografia de Luís Eme)