terça-feira, 29 de abril de 2014

Atalaia da Barroca - um olhar sobre as casas velhas


Atalaia da Barroca – um olhar sobre as casas velhas

Atalaia da Barroca: nome antigo, fonte sem água, caminhos de silvas e de pó. Ao lado passa uma estrada do século XXI; vinte metros de distância e dois séculos de diferença. Ao som da água contra as pedras da ribeira, apenas os pássaros replicam a melodia que nunca termina. As uvas pretas estão ao lado das pedras e dos figos mas ninguém as vem colher. Aqui houve rapazes (tio Manuel, tio João, tio Nascimento) que subiam às figueiras. Maria do Rosário ficava em casa com a mãe. Aqui comia-se o que a terra dava; couves ou batatas, feijões ou grão-de-bico, favas ou ervilhas, os mimos da horta. Atalaia da Barroca, lugar onde respira ainda o que sobejou do primeiro paraíso. Onde tudo era justo, suficiente, pleno e circular. Entre sementeira e colheita, entre esforço e prémio, entre suor e festa, entre luz e sombra, ser feliz era então aqui um ofício de todos os dias.   

José do Carmo Francisco 

(Fotografia de Autor Desconhecido)

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Balada da casa da Ericeira


Balada da casa da Ericeira

A casa que não é minha
Mas onde me sinto bem
Os galos de manhãzinha
Não deixam dormir ninguém

O vento traz a frescura
Que bate à porta do Verão
Uma varanda segura
Longe da maior confusão

A janela dá para o mar
O pinheiro serve de espelho
Que reflecte a luz do lugar
No moinho branco e velho

Caldeirada de paciência
Faz refeição de alegria
Entre a arte e a ciência
Esplendor de gastronomia

Entre o mar e a montanha
A casa é balcão voltado
Para uma luz estranha
Que vem ter a este lado

Nesta escada da paisagem
Com o mar aqui defronte
É no azul desta viagem
Que desenho o horizonte

A casa que não é minha
Mas onde me sinto bem
A serra é nossa vizinha
O mar fica mais além

José do Carmo Francisco  

(Fotografia de Autor Desconhecido)

segunda-feira, 7 de abril de 2014

As maças de Marta (Divertimento)


As maçãs de Marta (Divertimento)

São vinte e nove as caixas de madeira
A caminho do frigorífico num casarão
A terra ficou vermelha em sementeira
Foi o vento que à noite as pôs no chão

Lá as maçãs vão durar até Fevereiro
Resistindo à passagem das estações
Marta colou nestas caixas um letreiro
A fim de evitar possíveis confusões

Vejo as maçãs de Marta em Espanha
Na página dum livro semi-apodrecidas
A sua terra ficou ainda mais castanha
Juntando no meu poema as duas vidas

Marta López, minha amiga em poesia
Marta Lopes, minha filha mais pequena
O poema as veio juntar num fim de dia
Criando uma alegria profunda e serena

José do Carmo Francisco     

(O óleo é de James Borger)

domingo, 30 de março de 2014

A Voz de Fernanda


A voz de Fernanda

No som da tua voz há uma mistura
De alegria e de tristeza combinadas
Há nela todo o calor da tua ternura
Mais o frio trazido nas madrugadas

Oiço o som das tardes de sementeira
Na voz dentro do telefone da cidade
No entanto a sensação é verdadeira
Porque tudo na tua voz fala verdade

No som da tua voz há uma mistura
Do campo e da cidade de ruas vazias
Onde autocarros cheios de amargura
Passam junto à tua casa todos os dias

Oiço nela o som das tarefas da cozinha
Sinto nela o calor do forno a cozer pão
A tua voz nunca está longe nem sozinha
Está comigo entre o ouvido e o coração


José do Carmo Francisco

(Óleo de Karl Schmidt)

domingo, 16 de março de 2014

O gato da Fernanda - nove fragmentos


O gato de Fernanda – nove fragmentos

Atento, discreto, pacato. No perímetro da luz, olha a dona. O gato.

No lume aceso com a lenha do barracão antigo, as sombras são afastadas até ao sótão da infância. Aos gatos, sua paisagem, seu povoamento.

Que força empurra o gato frente ao sol no castanho-luz do telhado?

Teu gato a quem a chuva proíbe telhados e terraços. Veio do Egipto num navio de Veneza. No Cacém, sorri à dona portuguesa.

Terra trazida. Pequenas partículas de chuva nos limões e nas maçãs, invisíveis memórias de uma terra trazida. Minha terra, perto do teu gato.

Vejo intervalos de sol nos telhados do bairro, humidade permanente a respirar nas telhas como se o prédio fosse um corpo cansado, humano. O gato espreita.

Roubar alguns cabelos teus para fazer cordas de uma guitarra. Suave melodia, frente ao gato.

Há no teu olhar telhados infinitos, memória de paquetes brancos no rio e de sardinheiras vermelhas na varanda ao lado. Luz e calor. Gatos e sorrisos.

Há na tua voz um som que incorpora os sinos de Lisboa. De São Roque à Sé, da Conceição Velha à Madre de Deus. Toda a geografia de um afecto assim reproduzido, junto ao gato na janela.

José do Carmo Francisco 

(óleo de Carla Raadsveld)

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Balada para uma foto de Guilhermina


Balada para uma foto de Guilhermina

Entre menina e menina
Entre Cecília e Teresa
Retrato de Guilhermina
Aparece de surpresa
Num livro é marcador
A convocar a leitura
A citação ao dispor
De quem vai à procura
Linhas de sabedoria
Nos livros que são família
O sorriso ao fim do dia
Entre Teresa e Cecília.
No jardim a tarde encerra
Livro novo que se festeja
Longe da paz e da guerra
Batem sinos de uma igreja
Passam comboios repletos
De gente cansada, urbana
Nos seus desejos secretos
Pensam no fim-de-semana
Retrato de Guilhermina
Apoteose em beleza
Entre uma e outra menina
Entre Cecília e Teresa.

José do Carmo Francisco

(foto da colecção particular de JCF)

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Pranto e lamentação de Joana em 22 versos


Pranto e lamentação de Joana em 22 versos

O nosso vinte e cinco de Abril veio tarde de mais
Setenta e quatro deveria ter sido sessenta e um
O meu irmão foi dos primeiros, ainda fardas velhas
E veio numa caixa de pinho como se diz na canção.
Aqui houve plenários, as secretárias tinham tabaco
E eu ia ao lado das manifestações e dos cadernos
Eu então reivindicava outro vinte e cinco de Abril
Para que o meu irmão já não morresse na guerra
As lágrimas de minha mãe teriam ficado por chorar.
Houve delegados sindicais e comunicados a stencil
E votos de punho erguido em plenários concorridos
Nas escadas de vidro vejo subir gente apressada
E nas sombras julgo ver o meu irmão mais novo
Como se não tivesse havido morte nem lágrimas
Que minha mãe chorou quando leu o telegrama.
Não canto, nunca mais cantei as modas da terra
A minha voz está na lama dos caminhos, no escuro
Lá onde toda a harmonia se desintegra tão devagar
Na noite onde o silêncio é mais forte que o soluço
Soluço repetido, magoado, duplo, de duas mulheres
Enquanto meu pai no terraço e fuma outro cigarro
Longe de nós para que ninguém oiça nem perceba.

José do Carmo Francisco  

(O óleo é de Linda Christensen)          

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Ruy Belo


Ruy Belo

Na tua morte lembrei-me do canal do Panamá
Uma coisa que de certeza não te deve dizer nada
Agora que circulas pelo traçado de uma outra estrada
Á procura de uma praia como a Consolação – e que não há.
Formado em Direito Canónico e leitor de jornais desportivos
É possível que não conheças a história deste canal
Ainda por cima ele é tão longe de Portugal
E desse tempo há hoje apenas três operários vivos.
Morreram mais de vinte mil trabalhadores franceses
E nas sepulturas há apenas um número que os identifica
Não sei se morreste de malária ou febre-amarela – nada te rectifica
E nada me devolve as palavras que te ouvi algumas vezes.
Cada um escreve à sua maneira o poema que lhe calha
E tu já não podes acrescentar nada à tua poesia
Na tua morte percorro a tua margem de alegria
E peço-te desculpa por alguma inevitável falha.

José do Carmo Francisco 


(Fotografia de autor desconhecido)

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Fala de Leonel Pontes a Cristiano Ronaldo


Fala de Leonel Pontes a Cristiano Ronaldo

Tu comias uma banana dentro de um pão
E nunca paravas de jogar em toda a Ilha
Nos torneios diários de futebol de salão
Dando às equipas um toque de maravilha

Nas férias eu já não era o teu treinador
Mas o amigo sempre atento e preocupado
Procurando que te alimentasses com rigor
E seguindo os teus passos por todo o lado

Em Lisboa eu era então o teu motorista
E pronto a ir buscar-te a qualquer hora
Tua ligavas mal o avião chegava à pista
E nós ficávamos a falar pela noite fora

Agora tu fazes anúncios de publicidade
Não tens tempo para o treinador antigo
Mas nada destrói a força duma amizade 
E nunca deixei de ser muito teu amigo


José do Carmo Francisco   

(fotografia de autor desconhecido)

domingo, 5 de janeiro de 2014

Frente ao Jazigo em Sesimbra


Frente ao Jazigo em Sesimbra

Podias ter morrido no Porto ou em Coimbra
Nas curvas das estradas dessa antiga idade
Teu corpo repousa no castelo de Sesimbra
Onde tua mãe levava as flores da saudade.
Estou com gente sem memória desta dor
Que fez encher os móveis com teu retrato
Na cozinha, na sala, no quarto, no corredor
A união possível entre concreto e abstracto.
Teu nome assim por escrito e por extenso
Desenhado em pedra no silêncio do jazigo
No tempo onde eu estou e onde pertenço
Não alcanço palavras que procuro e persigo.
Encontro que não esperava com o passado
Em Sesimbra num castelo frente ao mar
Neste muro aqui em frente derrubado
Vejo a chave para os mistérios do lugar.

José do Carmo Francisco 

(Fotografia de Luís Milheiro)