terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Poema para os 500 anos do Bairro Alto


Poema para os 500 anos do Bairro Alto

Bairro Alto não tem becos; só travessas
E ruas que são grandes como artérias
Mais igrejas onde orações e promessas
São a resposta às desgraças e misérias.
Rua da Rosa onde um dia nasceu Camilo
Onde Nemésio teve quarto, era aspirante
Primeiro jornal onde a palavra era o estilo
Primeiro livro que hoje vejo tão distante.
Neste tempo há facadas só nos talhos
Continuam os lugares e as padarias
No mapa dos sonhos e dos trabalhos
Cartografamos as lágrimas e alegrias.
Que S. Roque nos proteja da ganância
Já que da Vereação nada se espera
Que Inverno perca força, importância
Que venha a luz e o sol da Primavera.

José do Carmo Francisco

(A ilustração é de Eduardo Salavisa)

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Até Esse Momento


Até Esse Momento

Lembrarás então o pai aqui sentado
A máquina de escrever no chão
Os discos na parede entre a luz e o pó

Irão passar talvez muitos anos
Farás promessas que não vais cumprir
E dirás ruas para voltar noutras horas

Será como quem percorre um caminho
Iluminado pela luz do teu olhar
À procura das palavras subterrâneas

Lembrarás então o pai aqui sentado
Um gelado presente do indicativo
E silencioso que não fala – não esquece

Passarás nas tuas mãos um fio
Será talvez a memória das noites
O tempo do leite e das fraldas

Será como quem procura descobrir
Nos desenhos (nos cadernos escolares)
Uma outra maneira – a tua outra voz

Lembrarás então o pai aqui sentado
Não como pai mas como anónima pessoa
Surpresa a esperar no céu do outono

Terás nas tuas mãos um retrato
O voo das aves por cima da casa
Como inesperada vírgula do tempo

Será como quem procura fragmentos
Num momento ou talvez num lugar
Na tua idade como um portão aberto

José do Carmo Francisco

(óleo de Judy Drew)

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Retrato de mulher no Bairro do Bom Retiro em 1961


Retrato de mulher no Bairro do Bom Retiro em 1961

Sempre de luto, não lhe sabia o nome
Que se esgotava em ser mãe de três
O António, o Manuel e a Marcolina.
A água do poço da casa era salobra
E servia apenas para as lavagens
A da sopa era da fonte de Santa Sofia.
A casa deles era pobre, húmida e fria
Mesmo rente à terra de semeadura
E muito abaixo do muro da nossa rua.
O mais velho era campino, lá longe
Vinha só de quinze em quinze dias
Para levar o avio numa saca preta.
António não usava o fato das festas
Mas sim o vulgar tecido de cotim
Tal como os militares e todos nós.
Manuel e Marcolina iam à Escola
Não tinham livros, alguém lhos deu
E calçavam sapatilhas das baratas.
Ainda hoje lhe recordo a silhueta
O cheiro da sopa de todos os dias
A máquina onde costurava lágrimas.
E não lhe recordo o nome que não sei
Nem a sua vida que trocou pela vida
Dos seus três filhos sempre asseados.

José do Carmo Francisco    

(Fotografia de autor desconhecido) 
    

domingo, 10 de novembro de 2013

Poema para um verso de Fernando Assis Pacheco


Poema para um verso de Fernando Assis Pacheco

Se fosse Deus parava o sol sobre Lisboa
No instante da sua força ao meio-dia
Como se a cidade fosse uma pessoa
A entrar na eternidade da fotografia.
A preto e branco como são as colinas
No coração de quem amou esta cidade
Em encontros e mensagens clandestinas
Para o sonho que se perdeu e é saudade.
Este prédio já foi o palácio Galvão Mexia
Ficaram os alicerces da antiga construção
As paredes contam a história de cada dia
A quem as souber escutar com atenção.
Depois é o ruído da água em surdina
Na fonte onde o garoto vende jornais
Descalço e de barrete chega à esquina
Duma vida feita de horas sempre iguais.


José do Carmo Francisco      

(O óleo é de Oleg  Basyuk)

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Balada para Helena menina


Balada para Helena menina

Em Jaen na Andaluzia
Em Úbeda, terra antiga
Helena foi uma alegria
Um amor de rapariga

Azeitona pequenina
No ramo da oliveira
Helena mulher-menina
No calor desta lareira

No signo do Aquário
Esta luz peninsular
Dia extraordinário
Na vertical do lugar

Ficou feliz a família
À volta desta figura
O berço não é mobília
Os lençóis são a ternura

O tempo não corre, voa
Entre estradas e caminhos
Mas de Madrid a Lisboa
Não vão faltar beijinhos

Que os filhos são juízes
A julgar nosso futuro
Por eles somos felizes
Num tempo tão inseguro

Investimento, esperança
Dividendo a quem souber
Vai adormecer criança
Para acordar já mulher

Balada que se termina
Numa palavra serena
Regista, canta, ilumina
O doce olhar de Helena

José do Carmo Francisco      

(O óleo é de Maki Hino)

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Lamentação da mondadeira de arroz


Lamentação da mondadeira de arroz

Ontem fui à criminosa
Não há nada que se esconda
Maioral de voz raivosa
Mandou-me para a monda.
Vou passar o dia inteiro
Com os pés na água fria
Chegam as febres primeiro
Logo se afasta a alegria.
No pátio que é nosso mundo
Nunca chega a Primavera
Há um silêncio profundo
Todos ficamos à espera.
Os filhos, noras e família
A mulher que vive ao lado
São para ele a mobília
Do querer descontrolado.
Onde ninguém tem vontade
Própria, nascida em raiz
Nem sonho de liberdade
Fora do que o maioral diz.
Na Senhora de Alcamé
Procissão, bênção do gado
Todo o mistério da fé
Continua indecifrado.
Teimosia milenar
Resiste num tempo lento
Aquilo que vou cantar
É levado pelo vento.   

José do Carmo Francisco  

(Fotografia de Autor Desconhecido)   

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Balada nocturna para Eduardina


Balada nocturna para Eduardina

Viola-da-terra, menina
Nas mãos de Hélio Beirão
Cria na voz de Eduardina
O rumor duma canção

Na Rua dos Navegantes
Como na Horta, cidade
São as coisas importantes
Que criam maior saudade

Entre igrejas e conventos
Entre ermidas e mercados
Ficam no pó dos momentos
Os teus passos registados

Nas janelas dos solares
Na Ribeira da Conceição
Nos mais diversos lugares
Angústias em construção

Viola-da-terra, menina
Mas mãos de Hélio Beirão
Cria na voz de Eduardina
O rumor duma canção

Das Angústias, freguesia
Pode nascer um compasso
Com palavras de alegria
É esta canção que faço

Jardim Florêncio Terra
Num coreto silenciado
Uma voz em pé de guerra
Procura por todo o lado

Qual é o exacto lugar
Onde fica a sua canção
Será na Rua do Mar
Ou na Rua de S. João

Viola-da-terra, menina
Nas mãos de Hélio Beirão
Cria na voz de Eduardina
O rumor duma canção                    

José do Carmo Francisco

(O óleo é de José Malhoa)
         

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Balada da Travessa da Queimada


Balada da Travessa da Queimada

Na memória inventada
à esquina da minha infância
A Travessa da Queimada
ficava a grande distância
Nos pavilhões e nas pistas~
nos estádios e piscinas
Nas crónicas e entrevistas
nas notícias pequeninas
Sonhava com os granéis
hoje é só computador
Não há chumbo nem papéis
num écran feito de cor
Mundial  sessenta e seis
 vivido linha por linha
E os magriços foram reis
bem ao lado da rainha
Estava na tropa e sabia
o peso da ditadura
Nas páginas que então lia
com o sinal da censura
E veio a libertação
maior a responsabilidade
Liberdade de expressão
é expressão da Liberdade
Nas etapas da alegria
 um gostinho de esperança
Carlos Miranda escrevia
a história da Volta à França
Eusébio e Agostinho
Lopes e Rosa a correr
No lugar do coitadinho
nascia o verbo vencer
Setenta e nove Outubro
passei para o outro lado
É então que me descubro
com um texto publicado
Nas colunas da amizade
 Vítor Santos e Pinhão
Abriram a claridade
 onde havia escuridão
No jornal de quinta-feira
um poema foi caminho
Poesia verdadeira
não se fecha no cantinho
O que o poema queria
era dar duas metades
Do futuro e da alegria
 do passado e das saudades
Não se vê o fim da rua
nesta longa caminhada
Porque A Bola continua
na Travessa da Queimada   

José do Carmo Francisco  

(Ilustração de Autor Desconhecido) 

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Balada para um encontro


Balada para um encontro

Nome de guerra, Silvina
Mapa antigo da cidade
Levanta a voz cristalina
Para dizer sua verdade
As ruas, igrejas e praças
São História por camadas
Em cima guerras, desgraças
Em baixo glórias passadas
Nome de guerra, Silvina
Entre clássico e moderno
Traz uma voz de menina
Ao tempo que é eterno
Fazendo viver de novo
A narração do conflito
E na memória do povo
Já é a figura de mito
Nome de guerra, Silvina
Num teatro de poesia
Diz adeus na sua esquina
Convoca uma alegria
Que nos cafés do Rossio
Teimosa todos os meses
Mesmo no tempo do frio
Aquece a voz dos fregueses

José do Carmo Francisco   

(Fotografia de Autor Desconhecido)  

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Balada de Mateus Queimado em 1913


Balada de Mateus Queimado em 1913

Meu tio, juiz de Direito
Comarca da ilha de Goa
Veio reformado a preceito
Era a bondade em pessoa

Da Índia eu nada sabia
Com tigres e palmares
Na Ilha era outra alegria
Touros em vários lugares

Na venda do Cambadinho
Cravo, pimenta e canela
Faço um recado sozinho
Espero o meu tio à janela

Entre lágrimas da mãe
Um suspiro mal abafado
Saímos mas não a bem
Despejados no mandado

Uma loiça de tons quentes
Foi sair duns caixotões
Eram colchas diferentes
Estampas, leques, cadeirões

No Mandovi ele insistia
Nós só tínhamos ribeiras
Um caudal só de um dia
Com lamas amareleiras

Um telegrama cifrado
Meio da aula de francês
De Lausanne enviado
Levou meu tio de vez

Pediu-lhe ajuda a filha
Para a fúria da mulher
Ele disse adeus à Ilha
São Francisco Xavier

Conversa interrompida
Do meu tio aposentado
Assim Goa saiu da vida
Do moço Mateus Queimado         

José do Carmo Francisco     

(fotografia de Autor Desconhecido)